Sunday, December 30, 2012

Uma história da leitura do olho

          Finalmente me deparei com História do olho, de Georges Bataille. A sobrecapa da edição que li, da Cosac, tem a foto da bunda de uma moça, cobrindo um dos olhos do corpo, o ânus, com a mão. Acho estranha aquela capa porque o racho da bunda parece estar sumindo, tornando essa bunda quase assexuada, ela em si quase uma metáfora do olho também, uma forma arredondada. Não sei se isso é proposital, trabalhado com Photoshop, ou uma esquisita característica da bunda retratada.
          Não havia entendido o porquê de eu ter conseguido ler a história do olho, mas continuar negando a prosa do Sade. Há uma familiaridade entre os autores, mas pensava que essa diferente reação em relação a autores com temáticas semelhantes poderia ocorrer talvez por Bataille ser mais soft. De certa maneira, isso não deixa de ser verdade. Contudo, o relato do próprio autor comentando sobre sua obra e a criação dela, no capítulo chamado "Reminiscências" (e também em "Plano para uma continuação da História do olho", "W.-C. Prefácio à História do olho" e "Olho") me fez digerir melhor a narrativa porque definitivamente aquilo era sonho, fantasia, tratava-se de um modo de domar os fantasmas do autor. O analista de Bataille sugeriu que escrevesse seus sonhos eróticos e ideias fixas sem barreiras. Ele fez isso, e isso, de certa forma e como ele mesmo diz, o salvou para a vida. Sade fez isso, mas ele andou como um danado por esta terra até o final de seus dias. Para ele a ficção e a literatura se confundiam.
          Bataille se humanizou quando escreveu sobre si mesmo. A ficção dele ganha dimensão quando surge o autor comentando sobre ela, falando sobre histórias que a mim pareceram até mais interessantes que o própria História do olho. Penso que esse livro, publicado sob pseudônimo até o final da vida do autor, foi a carta ao pai de Bataille, e com isso tudo ganha um sentido imenso.
          Há um ensaio de Roland Barthes, um apêndice da edição lida, que é chato (desculpem-me os linguistas, mas quase dormi com tantos termos da linguística que ele usou simplesmente para dizer coisas que eu havia entendido sem complicação), mas diz uma coisa bastante interessante e que me elucidou sobre a comparação entre Sade e Bataille: a prosa de Sade utiliza mais o encadeamento sintagmático, enquanto a de Bataille é uma linguagem mais paradigmática, adentrando no conteúdo e utilizando metáforas e metonímias específicas para o olho/ovo. Talvez esteja por aqui minha repulsa por Sade, a enumeração, variando alguns fatores como posições, combinações, etc., que ele faz de algo limitado por si: o erótico/pornográfico. Em Bataille eu sinto que sua narração direta transcende o próprio significado do que é dito, e isso me dá mais prazer como leitora.
          Do capítulo "Reminiscências", transcrevo:
 
          Por outro lado, às imagens de minhas obsessões associam-se lembranças de outra natureza.
          Nasci de um pai sifilítico (tabético). Ficou cego (já o era ao me conceber) e, quando eu tinha uns dois ou três anos, a mesma doença o tornou paralítico. Em menino, adorava aquele pai. Ora, a paralisia e a cegueira tinham, entre outras, estas consequências: ele não podia, como nós, urinar no banheiro; urinava em sua poltrona, tinha um recipiente para esse fim. Mijava na minha frente, debaixo de um cobertor que ele, sendo cego, não conseguia arrumar. O mais constragedor, aliás, era o modo como me olhava. Não vendo nada, sua pupila, na noite, perdia-se no alto, sob a pálpebra: esse movimento acontecia geralmente no momento de urinar. Ele tinha uns olhos grandes, muito abertos, num rosto magro, em forma de bico de águia. Normalmente, quando urianava, seus olhos ficavam quase brancos; ganhavam então uma expressão fugidia; tinham por único objeto um mundo que só ele podia ver e cuja visão provocava um riso ausente. Assim, é a imagem desses olhos brancos que eu associo à dos ovos quando, no decorrer da narrativa, falo do olho ou dos ovos, e urina geralmente aparece.
          Percebendo todas essas relações, creio ter descoberto um novo elo que liga o essencial da narrativa (considerada no seu conjunto) ao acontecimento mais grave da minha infância.
          [...]
          Uma noite, minha mãe e eu fomos acordados por um discurso que o doente produzia aos urros, no seu quarto: tinha enlouquecido de repente. O médico, chamado por mim, veio imediatamente. Em sua eloquência, meu pai imaginava os acontecimentos mais felizes. Tendo o médico se retirado com minha mãe para o quarto ao lado, o demente berrou com uma voz retumbante:
          - DOUTOR, AVISE QUANDO ACABAR DE FODER MINHA MULHER!
          Ele ria. Essa frase, arruinando os efeitos de uma educação severa, provocou-me, numa terrível hilaridade, a constante obrigação, acatada de forma inconsciente, de encontrar seus equivalente em minha vida e em meus pensamentos. Isso talvez esclareça a "história do olho".

Lembranças