Wednesday, May 21, 2008

"Dias e noites de amor e de guerra"

Peguei o livrinho do Eduardo Galeano (digo "livrinho" porque é de bolso), "Dias e noites de amor e de guerra". Um escritor que tem um livro chamado "O livro dos abraços" e um outro com o nome de "As veias abertas da América Latina" deve ser lido. Parece dupla personalidade estes títulos dados por uma mesma pessoa. Pois assim peguei o meu em uma banca da Paulista. Faz tempo. Só que uma reforma na sala causou um deslocamento de todos os meus livros. Toquei o pequeno Galeano e senti ser a hora. Ele tem quase tudo que procuro agora. A revolta, a poesia, o olhar para o outro com atenção e amor. É isso. Você, Galeano, faz companhia para mim por estes dias. Escritores não morrem (os bons) e aí lembro o que ele disse sobre Guimarães Rosa. Mas vou parar de escrever e transcreverei uns trechos do livro para quem ler este blog ficar com uma pontinha de curiosidade para conhecer ou reler este uruguaio:
A terceira margem do Rio Guimarães Rosa tinha sido advertido por uma cigana: "Você vai morrer quando realizar a sua maior ambição". Coisa rara: com tantos deuses e demônios que este homem continha, era um cavalheiro dos mais formais. Sua maior ambição consistia em ser nomeado membro da Academia Brasileira de Letras. Quando foi designado, inventou desculpas para adiar o ingresso. Inventou desculpas durante anos: a saúde, o tempo, uma viagem... Até que decidiu que tinha chegado a hora. Realizou-se a cerimônia solene e, em seu discurso, Guimarães Rosa disse: "As pessoas não morrem. Ficam encantadas." Três dias depois, ao meio-dia de um domingo, sua mulher encontrou-o morto quando voltou da missa. O homem que soube calar Juan Rulfo disse o que tinha para dizer em poucas páginas, puro osso e carne sem gordura, e depois guardou silêncio. Em 1974, em Buenos Aires, Rulfo me disse que não tinha tempo para escrever como queria, por causa do trabalhão que tinha em seu emprego na administração pública. Para ter tempo precisava uma licença e essa licença tinha que pedi-la aos médicos. E a gente não pode, me explicou Rulfo, ir ao médico e dizer: "Me sinto muito triste", porque por essas coisas os médicos não dão licença. Buenos Aires, dezembro de 1975: Comunhões Jairo me telefona. Chegou ontem de Porto Alegre; passará uns dias em Buenos Aires. Me convida para jantar. Faz cinco ou seis anos que não nos vemos. Me impressiona. Disfarço. Tem a cara deformada, um olho meio caído, e sorri torcendo a boca. A mão esquerda, mão de garra, move-se pouco: uma luva a proteje contra o frio da noite. Caminhamos pelo centro. O corpo de Jairo vacila, me empurra sem querer. Pára. Respira fundo. As pontadas da dor nas costas o acossam. Está nervoso. Caminha e cospe. Não faço perguntas. às vezes ele menciona o acidente: "Quando sofri o acidente", diz, ou diz: "Desde que sofri o acidente". Conta suas investigações históricas, os documentos apaixonantes que descobriu em Portugal, a vida nos mocambos de Palmares, as insurreições de escravos na cidade de Salvador; me explica sua tese sobre a escravidão como centro da história do Brasil. Entramos em um restaurante. Continuamos discutindo. Jairo estudou a fundo o Paraguai da época da ditadura de Francia. Discordamos. Tampouco estamos de acordo sobre os caudilhos montoneros da Argentina do século passado. Mas não é disso que ele quer falar comigo. O tempo inteiro sinto que o som é outro, que é outra a melodia. Pedimos mais vinho. Finalmente me fala dessa mulher. Conta do amor ardente e diz que uma noite ela o surpreendeu com outra. Dez dias mais tarde, Jairo foi pedir-lhe perdão. Ela não disse nada. Ele beijou-a e acariciou-a. Ela perguntou: - Quer dormir comigo? E disse: - Se quiser, vai ter de pagar. Ele sentou e olhou para ela. Perguntou: - E quanto você cobra? - Três mil cruzeiros - disse ela. Ele preencheu o cheque, devagar. Assinou, soprou a tinta e estendeu o cheque. Ela guardou-o e disse: - Espera que vou descer para comprar cigarros. E então ele ficou sozinho. Investiu contra o vidro da janela e saltou. Ficou estendido na calçada. O apartamento dela era no terceiro andar. Depois passaram um tempo sem se ver. Quande se encontraram, ele andava de muletas. Se abraçaram trocando insultos. Peço outra garrafa de vinho. - Estou farto de mentir - diz Jairo. - Todo mundo me pergunta o que aconteceu e eu digo que foi uma trombada. Eu ia de carro pela estrada e... Ultimamente, conto até os detalhes.
Trechos de "Dias e noites de amor e de guerra", de Eduardo Galeano. Tradução de Eric Nepomuceno. L&PM Editores.

Lembranças