Saturday, May 31, 2008

"Memórias do cárcere"

Na escola, sempre achava muito enfadonha a prosa da professorinha a dizer sobre a importância deste livro, "Memórias do cárcere". Um blablablá infindável num discurso que tornava a literatura brasileira uma chata a ser evitada. Careta, tudo a ser ignorado na adolescência.

Depois de anos, reencontro-me com ela, não a professora, a real chata da história, mas a literatura brasileira. Pelo "Chatô" que li, segui o caminho de "Olga". E em "Olga", do Fernando Moraes, esbarrei novamente com o autor quieto e certeiro, Graciliano Ramos. Por curiosidade e teimosia, me meti a ler "Memórias do cárcere". Há tempos já tinha feito amizade com as letras brasileiras, mas Graciliano é meu novo achado, minha vitória presente. Talvez arriscasse que a prisão transformou o homem. Talvez arriscasse que ele já carregava a prisão nele antes mesmo do cárcere. Eis um trecho entre tantos:

“Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas excelentes por falta de liberdade – talvez ingênuo recurso de justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coage a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer (...). Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu de escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.

“Os homens do primado espiritual viviam bem, tratavam do corpo, mas nós, desgraçados materialistas, alojados em quartos de pensão, como ratos em tocas, a pão e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a simples espíritos. E como outros espíritos miúdos dependiam de nós, e era preciso calçá-los, vesti-los, e alimentá-los, mandá-los ouvir cantigas e decorar feitos patrióticos, abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária, contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos engulhando produtos alheios. De alguma forma nos acanalhamos. Por que foi que um dos meus livros saiu tão ruim, pior que os outros? pergunta o crítico honesto. E alinha explicações aceitáveis. Nada disso: acho que é ruim porque está mal escrito. E está mal escrito porque não foi emendado, não se cortou pelo menos a terça parte dele.

“(...) Estarei próximo dos homens gordos do primado espiritual? poderei refestelar-me? Não, felizmente. Se me achasse assim, iria roncar, pensar na eternidade. Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. Contudo é indispensável um mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que nos envenenam. Fisicamente estamos em repouso. Engano. O pensamento foge da folha meio rabiscada. Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã? Terei desviado esses espectros? Ignoro. (...) emergimos lentamente daquele mundo horrível de treva e morte. Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando.”

“Memórias do cárcere” de Graciliano Ramos (44º edição), primeira publicação em 1953, meses depois da morte do autor – Graciliano ficou preso de 03 de março de 1936 a 13 de janeiro de 1937 sem acusação formal. Época da repressão do governo Vargas.

Lembranças