Tuesday, April 19, 2011

"Fartura de livros, barafunda do espírito."
(Sêneca, Cartas a Lucílio)

"(...) Sêneca insisti nisso: a prática de si implica a leitura, pois não é possível tudo tirar do fundo de si próprio nem armar-se por si só com o princípio de razão indispensável à conduta: guia ou exemplo, o auxílio dos outros é necessário. Mas não se deve dissociar leitura e escrita: deve-se 'recorrer alternadamente' a estas duas ocupações, e 'temperar uma por meio da outra'. Se escrever demais esgota (Sêneca pensa aqui no trabalho do estilo), o excesso de leitura dispersa: 'Fartura de livros, barafunda do espírito'. A passar sem descanso de livro para livro, sem nunca parar, sem voltar de tempos a tempos ao cortiço com a nossa provisão de néctar, sem tomar notas, por consequência, nem nos dotarmos por escrito de um tesouro de leitura, sujeitamo-nos a não reter nada, a dispersarmo-nos por diferentes pensamentos e a esquecermo-nos a nós próprios. A escrita, como maneira de recolher a leitura feita e de nos recolhermos sobre ela, é um exercício de razão que se opõe ao grave defeito da stultitia que a leitura infindável se arrisca a favorecer. A stultitia é definida pela agitação do espírito, a instabilidade da atenção, a mudança das opiniões e das vontades, e, consequentemente, a fragilidade perante todos os acontecimentos que possam ter lugar; caracteriza-se pelo fato de desviar o espírito para o futuro, de o tornar desejoso de novidades e de o impedir de se dotar de um ponto fixo pela posse de uma verdade adquirida."
Michel Foucault, "A escrita de si". In: ______. O que é um autor?.
Editora Passagens, 1992. p. 138-40.

Lembranças