Wednesday, November 11, 2009

Blecaute

Posso dizer que o blecaute de ontem foi acolhedor comigo: Tchekhov, literatura, papo furado, vela com a palavra "harmonia" escrita em japonês, cervejas, vinho, lanchinhos da Susu e muita amizade ao redor.

Este foi meu segundo blecaute em São Paulo. Para o primeiro, cheguei a fazer um continho (que saiu numa revista digital na época). Foi escrito em 1999, não lembro mais a data com exatidão. Mas resolvi colocá-lo por aqui. Para mim, ele representa como o tempo está passando e que, talvez, as pessoas não mudem tanto quanto deveriam com o passar dos anos. Podem mudar a escrita (talvez), mas algo da essência permanece.
Blecaute na Consolação

E assim sai: calmamente. Os pratos sujos pulavam da pia e só queria fugir de casa naquela noite inteira que sobrava. Disse a eles: fiquem vocês aí! Hoje a noite me espera. Contemplar a sétima arte? Por que não? Um filme cairia bem como uma cerveja quando está calor.

Pouco importava qual seria. Iria comprar um balde de pipoca, daqueles gigantes ao melhor estilo americano, colocaria os pés na cadeira da frente e relaxaria totalmente. Elizabeth. Ela, ou melhor, ele, o filme, lá no letreiro do cinema Belas Artes. Que música, que fotografia... que sono. A futura rainha dançava com aquele amante maravilhoso (mas esse não era o ator de Shakespeare Apaixonado? Ê Hollywood, tem suas razões que a própria razão desconhece. Ou talvez só os investidores) e eu sentia uma sensação ótima de bem-estar. Fechei só um pouquinho os olhos e uns dedos fortes batiam nas minhas costas como se eu fosse uma porta. Uma luz jorrou em meu rosto e logo fugiu para o lado. Ainda meio cega e vendo um monte de pontinhos vermelhos surgindo na minha frente pelo impacto da luminosidade repentina, ouço a voz aguda do lanterninha:

— Ei moça, a sessão acabou.
— Como?
— Hoje não tem mais nada.
— Como? Que horas são?

Nove e pouco? — o filme não poderia ter terminado. Vamos lá, começou às oito horas, três minutos de trailer, mais cento e vinte minutos e... Droga! Devo estar com a cara inchada, um filho da mãe vem me atrapalhar o sono e ainda tenho que fazer conta?

— Espera aí. O filme não acabou ainda.
— Olha moça. Se você não quer ir não precisa. Quer ficar aqui? Fica! – e apontou sua lanterna para a saída – Todo mundo já foi embora e pegou o ingresso de volta para assistir o filme outro dia.

Olhei em volta e percebi a sala vazia e o cinza da telona olhando a cena que acontecia. A estrela do filme era ausente: só restava a cadeira vazia. O homem a focava sem querer. Mas o que tinha acontecido?

— O que aconteceu?
— Nada. Acabou a luz e até agora não voltou.

Deixei o balde de pipoca vazio em cima da cadeira, joguei o ingresso com a assinatura rabiscada do gerente na calçada e dei de cara com uma Consolação escura, dantesca, congestionada. As únicas luzes eram as dos faróis dos carros: filas vermelhas de um lado e as brancas de outro, procissão fora de época.

Um homem de calça marrom e com a barba por fazer estava num cruzamento apitando para controlar o trânsito. Não era nenhum guarda, mas seu apito impunha tanto respeito que os motoristas e os pedestres obedeciam a seus comandos. Fazia movimentos com os braços retos e duros e subordinava a regras desconexas o fluxo dos carros e das pessoas numa sincronia incrível. Louco? Provavelmente. Ainda assim o dono do hospício: alienista de São Paulo. Ele necessitava resgatar a ordem para nós – os loucos – trocando os papéis a tanto estabelecidos. Ofélia é morta, mas a loucura não morre, se esconde e aparece na escuridão. A falta de luz faz isso e, quem sabe, seja esse o motivo de acabar a energia elétrica logo após uma explosão atômica - para os homens perderem a razão e pensarem estar num sonho ruim e restar ainda a esperança de tudo, então, voltar ao normal. E o “faça-se a luz” nas palavras de Deus ao iniciar a criação do mundo com as suas leis físicas, químicas e biológicas jorrava razão para isso tudo. O verbo queria a luz e Ele, aquilo que a razão não consegue explicar e com uma existência contestável, criou a razão. Uma relação antitética, não? Mas não seria a mesma coisa que esse louco fazia no meio da rua?

Ao fugir de um atropelamento, um moço me atropela na calçada. Andava na sarjeta para ficar mais perto das luzes dos carros e quase é engolido por um ônibus:

— Desculpa, essa cidade está um caos. Acho que o mundo vai acabar! — considerei de um certo exagero.
— Não tem importância, evitei sua queda. Afinal, você sabe o que está acontecendo?
— Tá tudo sem luz.
— Tudo?
— É. Ouvi pelo rádio que é um blecaute. Não sei o que aconteceu porque na hora a pilha começou a falhar quando iam informar melhor a notícia. Só hoje, vi dois assaltos na Paulista de um pessoal aproveitando a escuridão.

Lembrei que morava lá pelos lados da Maria Antônia e devia voltar para casa. Vá lá que de vez em quando (para não falar sempre) tinha um pessoal meio esquisito pelas redondezas. Já estava acostumada ao mendigo morador vitalício da rua; às garotas com pintura forte e saia curta em busca de uns trocados; o guardador de carros com uma boca sorridente e suspeita; o pedinte barbudo; a louca do bar da esquina que gritava frases desconexas durante algumas noites de bebedeira; o rapaz cabeludo do ponto de táxi. Até achava interessante esse movimento do submundo, mas no escuro a poesia virava sordidez. Resolvi: de onde eu estava não iria sair até chegar alguma luz, fosse ela artificial ou a do sol.

— E você? Vai ficar aí?
— Bem, é... Sim.

Observando melhor uma marquise do outro lado da rua vi algumas sombras dançando. As pessoas eram suas sombras. Pensei: “que azaradas, estão na rua bem hoje. Alguns estão voltando do trabalho, mas outros só resolveram dar uma volta e pensaram que não podiam ficar em casa trancados”. Sim, eu iria ficar ali. Imobilizada.

— Tem certeza que vai ficar aí parada?

Ouvi sua pergunta ao longe. Olhava o cartaz de propaganda com a modelo apagada. Nem ela se salvava na pouca luz. Pele cinza, boca cinza e sorriso cinza. A propaganda desnuda, crua. Não respondi.

— Ei, você vai ficar aí mesmo?
— É. Estou com um pouco de medo de voltar pra casa.
— Onde você mora?
— Lá perto da Maria Antônia.
— Então vamos lá, eu vou para aqueles lados também.

Bem, em vista da população dos arredores de casa até que não seria má idéia. E também esperar amanhecer na frente do Belas Artes no escuro não parecia uma das alternativas mais atraentes. Ser ou não ser, eis... Ah, eis nada! Resolvi ir com o, o, o...:

— Como é mesmo seu nome?
— Fernando. Só que eu gosto mais quando me chamam de Nando.
— Está voltando do trabalho?
— Não. Fui tomar um café na Augusta e acabei aqui.
— Ah...
— E qual é o seu nome?
— Beatriz. — Menti meu nome. Nem por uma questão de segurança. Menti porque gostava do som de Beatriz. Sempre quis ser Beatriz e por que não num blecaute?
— Bonito nome.
— É. Também acho.

No caminho de casa soube sobre seu sonho de ser gerente da empresa de telemarketing onde ele trabalhava como atendente, as brigas familiares por causa do brinco em sua orelha e do amor por uma prima distante que se correspondia por e-mail. Empolgado, carregava o grande livro de sua vida sob o braço — "Admirável Mundo Novo". Considerava-se o selvagem que lia Shakespeare isolado numa ilha. Mal sabia o coitado o fim pendular de seu selvagem, do homem selvagem. Ele me deixou na porta do prédio (nem tão assustador como eu pensava) e desejou sorte. Sorte... é o que todos precisamos.

— Tchau Fernando.
— Tchau. Qual é seu telefone?

Dei um qualquer. A lembrança das trevas deve ficar guardada no armário. Fernando também.

— Tchau Bia, até mais.
— Até mais.

Gosto de Bia. Entrei no prédio pensando isso e ouvi alguns gritos no elevador. Chamei o síndico e ele me disse com a maior naturalidade que alguém tinha ficado preso no elevador e só restava esperar a luz chegar. E os bombeiros? Ah, eles estavam muito ocupados com acidentes mais importantes e não poderiam ir até lá. A importância é medida por quantas pessoas um imprevisto pode atrapalhar. Um homem caído na rua atrapalharia o trânsito, mas a quem importunaria uma pessoa presa no escuro? Um pouco de grito e, com o tempo, a diminuição do ar no local acalmaria seu ânimo.

Coitado. Poderia ser eu caso tivesse resolvido sair algum tempo depois. Fico arrepiada só de pensar na possibilidade de estar trancada numa caixa escura. Falei para o zelador:

— Não tem como ajudar?
— Não liga não, tem até luz de emergência lá dentro. Não dura muito, mas fica mais um pouquinho.

Subi o escuro das escadas de volta para o cubículo, minha casa. Os gritos diminuíam de exaustão (eram agora quase uma ladainha) e, olhando os pratos sujos da pia, senti um conforto imenso. Estendi o lençol, cai sobre a cama e aproveitei o imenso vazio de luz da cidade que se aquietava.

Lembranças