Wednesday, February 11, 2009

Contigo en la distancia

Estou com muito tempo. Uma amiga escritora diz que leio muito (e produzo pouco - essa observação óbvia é por minha conta). Mas o mundo complica (talvez por eu ter mais tempo de reflexão) e esta sensação parece só ser amenizada com a busca por respostas de gente que está pensando sobre o mundo. Na literatura, no jornalismo, nas ciências sociais, na figura dos livres pensadores (isso é possível?). A leitura é uma busca sem fim. Chavão real: a vida não deixa de ser também. Quanta maldade em criar seres que não encontram suas respostas (e, muitas vezes, nem suas perguntas) antes do fim - até onde a ciência sabe.
Mas tudo dito para colocar mais um artigo neste blog de leitora. O S. me disse que evitava o Google e telefones celulares. Há um tempo. Não tinha entendido bem. Pois aí vai a explicação do Marcelo Coelho (Folha de S.P.).

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São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

MARCELO COELHO

Escravidão eletrônica

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O sistema inventado pelo Google transforma cada portador de celular num preso virtual
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PROCURO MANTER máxima distância do meu telefone celular. Por sorte, não é objeto imprescindível no meu cotidiano. Contaram-me de pessoas ocupadíssimas, que usam três celulares ao mesmo tempo.
Creio ter visto algumas delas em lojas ou elevadores. Berram no aparelho, que deveria ter algum mecanismo melhor de captação de som. Ou será que o mecanismo já é bom, e seus usuários não percebem?
Levo sempre um susto quando estou ao lado de uma pessoa, aparentemente normal e civilizada, e subitamente percebo que ela está falando em voz alta com alguém a quilômetros de distância.
Não sou ciumento, mas me sinto despossuído, roubado, ignorado, por alguém que prefere falar no celular em vez de manter o mesmo silêncio que eu. Será vaidade minha? Não sei. Prefiro pensar que se trata de um desrespeito: o falante do celular age como se eu não existisse.
Todo esse tipo de queixas se reduz à picuinha diante da última e assustadora novidade que li nos jornais.
Inventaram um jeito de localizar as pessoas por meio do celular. O serviço Latitude, do Google, descobre o paradeiro do cidadão que estiver com o celular ligado, desde que ele concorde em se inscrever no programa.
Em tese, como sempre, a invenção é boa: você marcou um encontro com um amigo (ou não marcou, pouco importa). Torna-se possível saber onde ele está, com visualização de mapas e tudo mais.
Amigos há muito tempo distantes se reencontrarão nas planícies de Mato Grosso, ex-mulheres poderão ser evitadas numa excursão às boates da moda, crianças perdidas reencontrarão os braços dos pais.
Fora essas situações extremas e cinematográficas, o Google Latitude se assemelha a outro dispositivo, contra o qual não me oponho. É o bracelete eletrônico, a tornolezeira punitiva que se usa para vigiar criminosos em regime de liberdade condicional.
Eis um instrumento maravilhoso, que evoca a velha imagem da bola de ferro presa com correntes ao tornozelo do prisioneiro, mas sob uma concepção moderna do ser humano: ele será livre, mas, graças à algema eletrônica, poderemos monitorá-lo. Que desperdício, afinal, de tempo e desconfiança, não existe em guardar um criminoso entre as grades?
Mas o sistema inventado pelo Google transforma cada portador de celular num preso virtual. O telefone móvel, que já era uma espécie de carro de bombeiros pronto a soar seu alarme em casos de emergência doméstica, torna-se uma espécie de radiopatrulha, pronta a detectar culpas e desvios de rota na vida de um cidadão honesto.
No mundo fantasioso do liberalismo, nenhum atentado à privacidade pessoal foi feito com essa invenção. O indivíduo escolhe soberanamente: instala o instrumento em seu celular ou não? Abre seus códigos para os amigos ou não?
Na vida real, os problemas são maiores. Uma indústria pode querer saber o que fazem seus vendedores e mensageiros quando se aventuram pelo mundo. Quantos trabalhadores serão obrigados a inscrever seus celulares no novo programa?
É verdade que a informática, até agora, esteve a serviço do trabalhador relapso. Sem ninguém ver, ele acessa sites de relacionamento pessoal nos horários de trabalho.
Uma questão subsiste, entretanto, nesse pega-pega entre o trabalhador e o patrão. Será realmente necessário o trabalho do empregado que foge o máximo que pode das exigências impostas no seu horário de serviço? Serão essenciais as horas integrais de esforço do funcionário que "tira uma folguinha" frequentando uma lan house ou um centro de videogames quando já está com sua missão cumprida?
Na outra ponta do espectro organizacional, o chefe aciona freneticamente as teclas do seu computador. Localiza o motoboy relapso nas imediações de uma praça onde ele não deveria estar. Brinca de videogame ele também.
São todos escravos, talvez, de um sistema eletrônico no qual a diferença entre jogo e trabalho tende a desaparecer, assim como a diferença entre vida pública e vida pessoal.
Isso é bom? É ruim? Meu otimismo impede respostas apocalípticas. Confio na esperteza (para o bem e para o mal) do ser humano. Logo inventarão maneiras de fugir aos novos braceletes celulares. Logo inventarão meios de disciplinar mais o ser humano. Nesse jogo entre ordem e desordem, progredimos.

coelhofsp@uol.com.br

Lembranças