Thursday, December 22, 2016

Apertei os parafusos das estantes de livro, sujei as mãos com a sujeira incrustada em cantos que só se mostram a quem acaricia para arrumar, para botar delicados arames entre corpos que se sustentarão apesar de sempre o susto da queda iminente por um vento mais forte correndo por duas janelas abertas. Elas lá, firmes, esperando os volumes finos e grossos que vão velar meus dias. Eu, nem tanto. As mãos lavadas para iniciar a colocação de cada livro por ordem de afinidade, abolição da ordem fria dos sobrenomes. Então me deparo com Barthes, então aparece para meus olhos "Fragmentos de um discurso amoroso". Abro e leio: 

"Eu-te-amo não tem empregos. Essa palavra, como quanto a de uma criança, não é entendida a partir de nenhuma coerção social; pode ser uma palavra sublime, solene, ligeira, erótica, pornográfica. É uma palavra socialmente errante. Eu-te-amo não tem nuanças. Suprime as explicações, os preparativos, os graus, os escrúpulos. De certa maneira - paradoxo exorbitante da linguagem - dizer eu-te-amo é fazer como se não houvesse nenhum outro teatro da fala, e essa palavra é sempre verdadeira (tem como referente apenas sua proferição: é um performativo). Eu-te-amo não tem exterior. É a palavra da díade (materna, amorosa); nela, nenhuma distância, nenhuma deformidade vem clivar o signo, ela não é metáfora de nada." 

Perco-me na beleza de considerar "eu te amo" uma palavra: eu-te-amo. Coisa grande de sentido completo e indefinido. Há livros sobre o colchão, há poeira antiga; e um Barthes gritando. Arrumar, limpar, organizar (ainda que sem lógica). Não sei como há pessoas que acham isso tão simples.

(14 de maio de 2013)

Lembranças