Tuesday, January 19, 2010

Peripécias do Seu Universo num dia qualquer

[Este escrevi em 2002 ou por aí. Agora, tanto faz.]


“Tá ruim, mas tá bom”. A frase velha na boca do Sr. M fez dele um homem satisfeito ao olhar sua calça manchada de café. Acordara aflito: 05h06. Seis minutos atrasados! Tragédia na rotina. Fuga da rota de homem-despertador que era. Mas a asa da xícara que resolveu quebrar bem naquele dia deu o sabor de café derramado. Tudo atrasado e confuso na vida do funcionário padrão; Sr. M.

Mas, nesse dia, o Seu Universo prestou atenção no Sr. M. Que frase era aquela? “Tá ruim, mas tá bom”. Concorrência brava com o charme do Seu Universo pintava: o paradoxo do caos e da ordem ficava num plano mais baixo no mundinho dos homens quando se tratava de modo tão confuso o ruim e o bom sem saber o que era o quê. Seu Universo quis ver até que ponto o bom estava no ruim.

Sr. M se atrasou uma hora exata, bateu o ponto e foi notificado em duas vias sobre sua demissão. Motivo 1 expresso: atraso. Motivo 2 real: corte de despesas. Mesmo sem compromisso, insistiu em manter o hábito de almoçar às 12h10 ruminando a frase: “tá ruim, mas tá bom”. Família não tinha para dar a notícia, cachorro morreu coisa de um ano, o gato fugiu há um mês, no entanto, tinha casa, alguns livros e uma boa cama para encostar a cabeça e ver seu programa favorito de TV até tudo se ajeitar. “Tá ruim... ah, mas tá bom!”.

Nem deu tempo de terminar a digestão lendo anúncios de subempregos no centro da cidade e a chuva começou. Forte, torrencial. A televisão na vitrine atraiu Sr. M e lá ele ficou esperando a chuva acalmar hipnotizado pela dança de imagens de seu programa preferido. A loira anunciou o método revolucionário para parar de fumar e o corte brusco do merchandising fez Sr. M ver seu bairro na TV com bombeiros resgatando uma vizinha conhecida e as casas sob a água barrenta. Saldo: perda total. Sem cama, sem TV, com a roupa do corpo e casa embargada pela prefeitura. Sr. M pegou um dos cobertores que estavam doando aos desabrigados e comprou uma boa garrafa de conhaque para se esquentar. Bebeu de dar gosto. Ficou tudo bem e rindo disse: “tá ruim, mas tá bom”.

A parada com o Sr. M era dura. Seu Universo já culminava no vazio absoluto da desordem. Colocou, então, Sr. M numa jaulinha pequena e solitária onde ele só viria o cinza da parede de concreto que cercava a gaiola. Sem TV, nem livro, nem lápis, nem casa engraçada feito com muito esmero na rua-dos-bobos-número-zero, nem nada. Só parede e a vigia imensa de Seu Universo. Dormia torto, comia mal, só que, bem mais do que antes, sonhava. Agora, tinha família, morava num lugar arborizado, trabalhava pintando paredes de escolas das mais diversas cores, seu gato voltara.

Sr. M, já quase sem voz, sente o peso da presença do Seu Universo perguntando: “e agora, tá ruim ou tá bom?”. Balbucia: “tá ruim”, e o Universo volta à sua ordem, afasta-se em sua grandeza. Sr. M come frutas com sua filha mais nova e aprecia os cabelos de sua mulher misturados ao horizonte longínquo cheio de árvores: “...mas tá bom”. Encolhe-se mais na gaiola minúscula acariciando os pelos do gato e verifica que a chuva apagara a mancha negra do café em sua calça.

Lembranças