Saturday, September 26, 2009

Comédia

Ela trouxe para casa um livro antigo, grande, pesado e incompreensível.

Apesar (e por causa) dos oito anos de diferença entre nós, minha irmã me iniciou em muitas coisas. Ficaram impressos em mim alguns de seus ensinamentos como a arte de beber sem ficar bêbada, o mundo revolucionário da Feijãozinha Amarelinha – a boneca com personalidade mais forte que a Emília – e as figuras daquele livro.

O livro: algo tão pesado carregava dentro de si imagens delicadas e agressivas feitas com traços finos e nervosos. Tratava-se de grandes cenas. As palavras surgiam acompanhando as imagens e pareciam ter um som bonito, estranhamente familiar em algo enigmático para mim. Grupos de frases curtas com uma simetria desconhecida. Formavam tiras com pausas – linhas em branco. Tudo parecia levar a quem tocasse cada página a uma queda inevitável para a seguinte. O fundo amarelado do papel e a capa dura, azul escura, lembravam o medonho livro de medicina caseira que meu pai carregava a cada mal-estar na casa.

É hora de você ler isso, assim falou a ela o professor particular de italiano, um senhor velhinho e dono de vasta biblioteca. E emprestou-lhe o livro que chegou a nossa casa cercado de abraço e embrulhado sob várias camadas de pacote pardo de supermercado. Aquela era sua iniciação. E eu, como violando um diário, espiava suas folhas a cada ausência de minha irmã.

Mostrava-se mais bonito que a bíblia de casa com suas imagens tristes de santos sofredores e Cristo na cruz, mas havia algo nos homens e mulheres desenhados que os tornavam próximos, de um sofrimento e semblante das pessoas nas ruas e de casa. Gostava mesmo é das cenas impressionantes de demônios e abismos e rios e instrumentos e bocas abertas, olhares angustiados e confusos. Muitas vezes, o equilíbrio do espetáculo se dava por duas figuras, duas pessoas que apenas caminhavam. “Como eles conseguem andar no meio de tanta dor?”, pensava (depois iria saber que é possível andar em tal condição, cotidianamente).

O pior de tudo era pensar que deram o nome de “comédia” (e com dois emes) àquilo tudo. Além de comédia, “divina”. Comédia não deveria ser engraçada? Era permitido ao divino ser engraçado?

E um dia minha irmã reclamou da dificuldade do texto. Ouvi e achei que estava com a solução na manga, pronta para tirar: “olhe mais as figuras”. Podia ajudar, afinal eu não entendia praticamente nada das palavras e conseguia ouvir as figuras, conversar com elas. Ela olhou para mim com certa estranheza. Gelei. Fui descoberta em meu pecado! Mas, então, disse que iria ler algo muito bonito. Começou. Parecia música, parecia um pouco minha avó falando com carinho e fui encantada. As línguas também tinham figuras que falavam. Sentou-se ao meu lado, mostrou as palavras e explicou que Dante (um autor, alguém que escreveu aquilo em italiano, assim como teve um alguém que desenhou as figuras) escrevera sobre um poeta que conheceu o inferno, o purgatório e o paraíso e, naquela hora, ele iria passar a porta do inferno e lá estava escrito algo sobre deixar todas as esperanças aqueles que por lá entrassem. Perguntei se inferno existia e, se existia, em qual língua estaria a tal placa? Ela ficou algum tempo pensando em não sei o quê enquanto eu esperava a resposta. Naquele momento, a Feijãozinha Amarelinha começou a falar comigo e me esqueci do inferno. Vinha anunciar o início de um espetáculo daqui a uns minutos, uma história com toda a turma dela (Caretinha, um boneco magrelo com touquinha azul, e Feijãozinha Rosinha). A janela e as cortinas foram fechadas e começou mais um teatro de bonecos – algo corriqueiro em minha vida naqueles tempos. A escuridão do quarto se encheu de rostos alegres e irreverentes, vozes diferentes com o mesmo timbre.

Há uns meses encontrei uma réplica da Feijãozinha Amarelinha na estante de minha irmã – raridade comprada pelo marido dela no Mercado Livre (a original minha mãe deu para alguém há muito tempo). Numa ida à livraria que tive que fazer estes dias, encontrei diversos exemplares de uma edição de bolso com texto integral de A divina comédia. Agora, um deles está irremediavelmente comigo.

Ninguém foge da infância.

Lembranças