Acho que todo leitor é essencialmente um voyeur. Penso sobre isso porque li no artigo abaixo um questionamento sobre a validade de ler as cartas de Joyce para a esposa Nora. Há algo que não pode ser encontrado na obra dele, e que podemos encontrar nas cartas, que seja importante para a leitura da obra? Existe uma ética (e questões legais) na divulgação de cartas pessoais. Mas ainda que a resposta seja não, que leitor nega o olhar no buraco da fechadura?
Umberto Eco fez seus monges olharem para esse buraco coberto pela moral em O nome da rosa, e os matou (ninguém sai incólume dessa espiada - e aqui é inevitável lembrar as crianças que entram sem bater no quarto dos pais...). Para deixar claro, não li Ulisses ainda. É tão chata a áurea que botam sobre alguns livros que a gente fica com medo da aproximação: referências a não sei quantas línguas, a Homero (que li a primeira vez só por causa do Joyce), a isso, a aquilo. Ninguém fala de prazer. Há sacanagem lá dentro, vai ser legal a leitura. Somente agora algumas pessoas falam isso baixinho para não passarem por sacanas ou burras. Ninguém diz, por exemplo, que a gente vai rir muito enquanto estiver lendo Dom Quixote (e depois ficar meio melancólico, mas as coisas são assim mesmo) - só vem aquele papo de "ser importante". Sim, nesses livros há aspectos importantíssimos de contextualização histórica, estilo, relevância para a literatura de um época, etc. e tal. Mas o leitor pede saída do mundo como conhecido, pede sentimentos (ainda que mostrados pela falta dele), pede o choque (ainda que seja aquele sentido somente depois de um tempo e tão bem trabalhado por Tchekhov). Raios, ler algo porque fulano é o arauto da literatura, o livro é essencial e "como você ainda não leu tal livro?" são argumentos chatos e fracos!
As pessoas vão assistir a novela no sofá confortável ou ler livros por elas mesmas, que encantem por algo quase inexplicável. Achei linda a história do início da correspondência entre Joyce e Nora: "The letters are by turns pornographic, erotic, romantic, poetic, and often downright funny, and they were written for Nora’s eyes alone in a correspondence initiated by her in November of 1909, while Joyce was in Dublin and she was in Trieste raising their two children in very straitened circumstances. Nora hoped to keep Joyce away from prostitutes by feeding his fantasies in writing, and Joyce needed to woo Nora again — she had threatened to leave him for his lack of financial support. In the letters, they remind each other of their first date on June 16, 1904 (subsequently memorialized as “Bloomsday,” the date on which all of Ulysses is set). [tradução ruinzinha e meio livre: "as cartas são algumas vezes pornográficas, eróticas, outras românticas, poéticas e sempre bastante divertidas. Elas foram escritas para serem lidas somente por Nora, em uma troca de correspondência iniciada por ela em novembro de 1909, quando Joyce estava em Dublin, e ela em Trieste cuidando dos dois filhos deles em condições muito precárias. Nora desejava manter Joyce afastado das prostitutas alimentando suas fantasias por escrito, e Joyce queria conquistar novamente Nora — ela havia ameaçado deixá-lo por ele não lhe dar apoio financeiro. Nas cartas, recordam um ao outro o primeiro encontro em 16 de junho de 1904 (posteriormente imortalizado como "Bloomsday", a data na qual se passa todo Ulisses)"].
Tudo isso para finalmente dizer que fiquei com vontade de ler Ulisses e que já espiei as cartas dele para ela (as dela para ele são raras). Cartas sujas, pesadas, pornográficas e com muitos apelidos e coisas divertidas. Assim como essas, no livrão deve haver outras, escondidas nos criados-mudos das páginas.
E eu, como boa voyeur, ando prestes a espiar a fechadura daquele dia 16 de junho.